sábado, 28 de junho de 2014

o mundo inteiro

   Você já entrou no ônibus, sentou sozinho no banco da janela deixando o lugar do corredor vago, botou seu fone de ouvido e, de repente, percebeu que alguém aleatório sentou ao seu lado, justamente no lugar vago que você deixou, mesmo tendo a opção de se sentar sozinho na janela como você fez? E quando isso aconteceu, você teve a sensação esquizofrênica de estar sendo vigiado ou perseguido por quem sentou ao seu lado? Bem, tinha a Antônia. Com cabelos ralos, intensamente pretos e que cismavam em voar quando um vento leve soprava sobre eles, ela nunca saía de casa sem seu inseparável Sophie intenso. Era quase um hobby passar batom. Ela também amava andar de ônibus. Mas ela não era do tipo de pessoa que senta na janela sozinha, que bota um fone de ouvido e faz todo o itinerário lendo um livro. Ela sentava no corredor, sempre ao lado de alguém (homens no geral, mas mulheres também não eram descartadas). Nada dava mais prazer a Antônia do que enxergar a história de suas vítimas, de imaginar o que eles comeram no café da manhã de quinta passada ou se sofreram algum tipo de trauma quando ainda tinham cinco. Antônia gostava de fazer companhia e entender as pessoas. 
   Toda vez que ela se aproximava de alguém e se sentava ao lado de um cara qualquer no ônibus, era como se ela estivesse perguntando para ele em pensamento, transcrito em seu olhar, "como você se sente?". E não é que eles a respondiam? Era como se eles contassem toda sua vida para ela. Outro dia, por exemplo, voltando da faculdade, Antônia pegou um ônibus do jeito que gostava, meio vazio, cheio de opções de lugares do corredor a serem escolhidas. Ao botar o pé direito no primeiro degrau da pequena escada do ônibus, enfiou a mão no bolso menor de sua bolsa, pegou o troco do café que havia comprado hoje pela manhã e entregou ao motorista que também era o cobrador. Se posicionou como sempre na catraca, de lado mas sempre olhando para dentro do ônibus, já escolhendo sua presa futura. Estava lá. Seus olhos nem precisaram procurar muito. E convenhamos que seus olhos eram ótimos atores. Eles precisavam farejar o cara da vez e ainda fingir que estavam desinteressados, só de passagem, e tudo isso com um leve toque de sensualidade que só Antônia tinha no olhar. Meio sexy sem ser vulgar, sabe? Seu olhar estava de parabéns. Nunca subestime um olhar. Eles dizem as melhores coisas nas mais simples e distintas maneiras. 
   "André. 32. Ainda mora com os pais. Namora uma menina tímida chamada Bianca. Em sua vida inteira beijou apenas duas moças e um rapaz. E uma das moças era a Bianca. É leonino, porém não faz muito sucesso com as pessoas apesar de querer ser o centro das atenções por onde passa. Será difícil decifrar esse ai", pensou. Pensou isso tudo enquanto andava da catraca até a segunda fileira de assentos que ficavam atrás da porta de saída, no meio do ônibus. Mas para pensar essa infinidade de coisas sobre um estranho ela não levava em consideração a aparência. Qualquer um que visse aquele garoto diria que seu nome é Bernardo e que ele tinha 19 anos. Ele tinha a maior cara de quem acabou de passar no vestibular e ainda estava experimentando a vida de universitário. Antônia não ligava para aparência para concluir sobre ninguém. Ela realmente tentava entender a pessoa por dentro. Para isso nem olhava o rosto, só olhos bastavam. Disse "oi" levantando o cenho, apoio a mão esquerda no suporte superior do ônibus e deslizou para sentar-se ao lado de André. "Dia quente hoje, não?", disse depois de alguns segundos em sua mente olhando para ele, aguardando tímida a resposta. Ao desviar os olhos dela pra janela, André deu um leve sorriso. Achava a situação inusitada de ter uma louca ao seu lado claramente dando em cima dele engaçada. "Realmente quente. Quer ir a minha casa hoje?", recebeu a resposta em choque, alguns minutos depois. "Não", respondeu. E finalmente os olhos dos dois não mais se cruzaram, pois Antônia já mantinha uma estranha feição séria e surpresa ao mesmo tempo. Já sabia tudo o que precisava, já entendera até de mais qual era a dele.
   Desceu seis pontos depois. "Apressado demais. Por isso só três pessoas. Talvez apenas seja muita carência. Coitado", pensou enquanto descia do ônibus. Dali até em casa ela tinha uns duzentos metros a serem percorridos a pé e mais alguns poucos minutos para não esquecer mais um estranho com uma história incrível a ser escrita. Pegou a chave no mesmo bolso pequeno da bolsa em que o dinheiro do ônibus estava. Abriu a porta delicadamente e caminhou nas pontas dos dedos, com cuidado para não escorregar por causa da meia que ainda estava lá em seus pés.  Sentou na cama e escreveu sobre mais um alguém que ela fez companhia em um ônibus. André não mais esteve sozinho em seu trajeto pra casa, teve alguém pra conversar e para o tirar da solidão dos fones de ouvido e das músicas altas. Antônia lembrou disso e se sentiu feliz de uma maneira tão simples enquanto escrevia sobre como o cabelo dele seria lindo se ele o jogasse para o lado ou talvez simplesmente cortasse. E quem nunca se sentiu um André ou uma Antônia na vida quando andou de ônibus uma vezinha sequer? Quem nunca nomeou um estranho ou tentou descobrir apenas olhando para ele seu estado civil? Ela podia acertar em cem porcento ou errar tudo o que imaginou sobre alguém. Mas uma coisa ela tinha: essa menina guardava o mundo inteiro e mais alguns em sua cabeça e, assim, ia colecionando amizades e criando sua interminável lista de contatos. 


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