quinta-feira, 21 de maio de 2015

carta do eu sufocado

Crescer, comer, dormir, falar, expressar-se, dançar, beber. A cada dia passado é levada uma emoção que já foi vivida e que agora não efetua-se da mesma forma. Escrevo para não morrer sufocado pelas minhas próprias palavras e traído pelos meus próprios sentimentos. Coisas acumuladas são passíveis de traição. Por isso, desapegue-se, deixe ir ou aprenda a lidar sem reclamar do traidor, sem falar mal da traição. Desapegue-se apenas. Escreva, diga, cresça, coma, durma, fale, expresse-se, dance, beba. Não fuja, solte o que te prende para que não seja mais prisioneiro. De preferência grite para espantar. Mas haja o que houver C O N T I N U E  S E N T I N D O, aqueça-se no frio, abrace uma coisa por você amada. Não fale com estranhos e não pinte seu cabelo de vermelho.
Se for pra se entregar, entregue-se mas revista-se de bom humor para não ficar tão sério. Não leve-se a sério, leve-se ao orgasmo, deixe passar o que não te satisfaz. Satisfaça-se antes de tudo. Uma outra pessoa nunca será para você o que você mesmo é. Ninguém te entenderá como você pode se entender. Assim também é com o amor. Ame-se para não precisar ser amado. Não é fácil ser amado, ser amável e ser fazer amor. Comece tentando falar para você mesmo em pensamento ou frente a um espelho o quão bom é você e estar com você mesmo. Se não der certo, grite para espantar. Grite para espantar o que te impede. 
E o mais importante: não siga nada disso que eu disse. Não passam de emoções e emoções são levadas e superadas a cada dia que passa.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

tempos de ditadura

   O olhar daquela menina me matava lentamente. Sempre com suas cores confusas e predestinadas, ela dançava ao andar, deixando seu arredor com um tom cinza tempestade. Roupas de humanas, chapéu na mão, seus lábios desenhados a guache por Deus era uma obra prima com um primor peculiar. Ejetava palavras graciosas, cortantes como uma espada que perfura um abdômen e dele faz jorrar o quente líquido da vida, vivo que só ele. Sua voz suave como um sorvete cremoso de morango soava clichê, comparada às vozes dos mesmos anjos que cantam eternamente e encantam os céus.

   O olhar daquela menina me matava lentamente. Era uma tortura arquiteta e cautelosamente pensada para te torturar. Seus olhos tristes refletiam uma angústia exteriormente pessoal apesar de suas feições ligeiramente pálidas imprimirem faces de prazeres mútuos, de felicidades plenas; eram mentiras aderidas a sua realidade.  Era pressionada, controlada, ela torturava com seu sofrer. Marcada interiormente com as marcas e restos cuspidos de palavras desmotivadoras e reacionárias, como um animal que recebe o ferro pelando em sua pele e calado. Seus olhos eram militantes. Lutava pela libertação de toda a alma da menina. Ela vivia um diário sessenta e quatro. Seu olhar mostrava isso.

   O olhar daquela menina me matava lentamente. De felicidade eu morria porque estava esperançoso com ela, como uma mãe que deseja ver seu filho que ainda nem nasceu e descansa em seu útero. Tinha alma jovem, e corpo que tendia para o livre. Ideais de quem quer a vida e sua liberdade acima de tudo. Era como um pássaro que, mesmo nos grilhões há anos, ainda mantinha a fé que viveria para transpassar a pequena porta de sua cela e bater suas asas rumo a qualquer lugar. Era diferente de sua mãe, mesmo assim grata pelo que fizeste. Pensava solto, almejava grande. Essa menina ainda tinha muito que andar. Vai longe!

   Mesmo me matando dolorosamente, o olhar daquela menina também me revivia. 

terça-feira, 21 de outubro de 2014

meninos, tragam os refrigerantes.

Meninas, para a festa vocês devem trazer algum prato de comida.

Imaginemos uma festa escolar. No dia, era certo que a Júlia levaria a esplendida pizza de calabresa caseira que sua avó fazia e que o Matheus levaria o refrigerante mais barato da padaria (comprado minutos antes do horário marcado) porque parte do dinheiro que o pai deu para a Coca-Cola fora gastado com o ioiô de última geração, também comprado na padaria. Mas a questão não é a qualidade do que será consumido sábado na festa do colégio às nove da manhã, tampouco a facilidade com que o Matheus comprou o refrigerante meia boca e o trabalho que a avó da Júlia teve para preparar a pizza. Mas porque a teve de levar a pizza e o Barriga comprar um refrigerante?

Claro, por que não fazer as meninas levarem os doces ou os salgados? Afinal, é tão normal dividir as tarefas assim. Minha professora fazia assim, a professora da professora da professora dela também fazia assim. “Ah, as meninas têm mais facilidade com a cozinha, mais proximidade” (mesmo elas tendo oito, nove, dez anos). “Ora, faz mais sentido ser desse jeito. Onde já se viu botar um menino para levar comida uma coisa [que a menina tem de aprender a fazer mais cedo ou mais tarde] tão doméstica”. “Ah, é algo tão inocente”, minha avó, a mãe do meu pai, cisma em dizer, “vocês feministas que veem maldade em tudo, são revoltados com o mundo”. Pra ela é fácil dizer, só tinha de comprar o refrigerante para o meu pai e meu tio levarem para a escola. Já minha mãe não, sempre questionou o porquê disso. E ela não discordava dessa divisão de tarefas pela sintaxe do negócio, e sim porque eu tenho uma irmã... Mas coitada da minha mãe: mãe solteira, com três empregos e pressa. Não tinha tempo de fazer uma pizza de calabresa caseira. Logo, minha irmã era a única que levava refrigerante e um bilhete (escrito com as letras desenhadas da minha mãe) dizendo “desculpas, mas não tive tempo de preparar nada”.

Acho que eu era o único menino que não queria levar refrigerante. Só não tinha coragem de enfrentar minha mãe para consertar algo que estava claramente errado. As crianças deviam escolher levar as coisas que quisessem ou que os pais podiam fazer ou pagar. Cara, fazer uma menina a levar algo mais trabalhoso, caseiro, detalhado é tão antiquado. Como se ela fosse obrigada a cozinhar. Isso se assemelha a dar uma mini cozinha para ela fingir que cozinha para sua filhinha (uma boneca branca, importante ressalta), ou uma vassourinha para que ela varra sua casa imaginária. Enquanto isso, o menino dirige sua réplica adaptada de Ferrari, constrói verdadeiras mansões de Lego porque seus pais enchem seus ouvidos com um diário “você será um engenheiro”, o menino é estimulado a ser rico, provedor e ostentador de boas coisas. “Ah, os brinquedos são para ajudar no futuro da criança, né?” E que belo futuro...

“Minha mãe, vai me matar” eu pensava desesperado enquanto assinava meu nome ao lado do sanduíche de sardinha. Estava cansado de levar refrigerante. Quando cheguei em casa e expliquei porque tinha escolhido aquilo, minha mãe entendeu, me abraçou e me ajudou a montar os sanduíches, mesmo cansada do trabalho, que fique claro.

“Escolas, deixem as crianças escolherem o que querem levar. Não determinem nada, por favor. O sexismo infelizmente já é em ensinado casa, não precisamos de vocês dando aula disso. Na verdade, na verdade, se querem dar uma festa, vocês deviam pagar tudo.” 

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

é com os olhos que se fala

Já dizia o menino que dançava

Já falavam os corpos
que abriam os olhos
que viam a vida passar

Viam o menino andar

sábado, 12 de julho de 2014

ESSE ANO EU PROMETI…

   Ser simpático, pensar coisas boas, desejar coisas boas. Comer menos, conversar mais pessoalmente, tratar bem meus amigos, falar mais mal das pessoas com os meus melhores amigos, fazer novos amigos. Prometi comprar mais roupa, doar as que eu não preciso, comprar uma touca, mais dois pares de meias, um par de luvas, mais blusas xadrez, menos calça jeans. Vestir menos preto, usar mais as cores, mudar o corte do cabelo e voltar ao curso de inglês. Também prometi terminar as séries que comecei e não mais deixar os filmes pela metade (mesmo os mais chatos). Prometi sair mais, conhecer gente nova, beijar na boca, fazer amor, fazer sexo. Beber mais tequila e nunca mais beber vodka. Prometi ainda evitar as drogas e dizer mais "eu te amo". Estudar mais, falar menos, largar o celular e o mundo virtual. Ser mais corajoso, mais espiritualizado, pensar mais positivo, deixar de lado o pessimismo. Confiar mais nas pessoas e assistir menos pornô. Prometi sorrir mais nas reuniões de família, ouvir mais meus avós, gargalhar nas piadas mais sem graça por educação. Ser gentil com as pessoas que precisam de ajuda, com as que não precisam e com as tias chatas que sempre perguntam "e as namoradinhas?". Aprender mais duas línguas, prometi a mim mesmo viajar, prestar o vestibular mesmo não tendo chances, arriscar ao máximo (afinal, o que se tem a perder?). Deixar a vida me abraçar e abraçar mais a vida. Prometi ter um ano tranquilo, prometi ser mais sincero. Prometi não fazer mais promessas.

sábado, 28 de junho de 2014

o mundo inteiro

   Você já entrou no ônibus, sentou sozinho no banco da janela deixando o lugar do corredor vago, botou seu fone de ouvido e, de repente, percebeu que alguém aleatório sentou ao seu lado, justamente no lugar vago que você deixou, mesmo tendo a opção de se sentar sozinho na janela como você fez? E quando isso aconteceu, você teve a sensação esquizofrênica de estar sendo vigiado ou perseguido por quem sentou ao seu lado? Bem, tinha a Antônia. Com cabelos ralos, intensamente pretos e que cismavam em voar quando um vento leve soprava sobre eles, ela nunca saía de casa sem seu inseparável Sophie intenso. Era quase um hobby passar batom. Ela também amava andar de ônibus. Mas ela não era do tipo de pessoa que senta na janela sozinha, que bota um fone de ouvido e faz todo o itinerário lendo um livro. Ela sentava no corredor, sempre ao lado de alguém (homens no geral, mas mulheres também não eram descartadas). Nada dava mais prazer a Antônia do que enxergar a história de suas vítimas, de imaginar o que eles comeram no café da manhã de quinta passada ou se sofreram algum tipo de trauma quando ainda tinham cinco. Antônia gostava de fazer companhia e entender as pessoas. 
   Toda vez que ela se aproximava de alguém e se sentava ao lado de um cara qualquer no ônibus, era como se ela estivesse perguntando para ele em pensamento, transcrito em seu olhar, "como você se sente?". E não é que eles a respondiam? Era como se eles contassem toda sua vida para ela. Outro dia, por exemplo, voltando da faculdade, Antônia pegou um ônibus do jeito que gostava, meio vazio, cheio de opções de lugares do corredor a serem escolhidas. Ao botar o pé direito no primeiro degrau da pequena escada do ônibus, enfiou a mão no bolso menor de sua bolsa, pegou o troco do café que havia comprado hoje pela manhã e entregou ao motorista que também era o cobrador. Se posicionou como sempre na catraca, de lado mas sempre olhando para dentro do ônibus, já escolhendo sua presa futura. Estava lá. Seus olhos nem precisaram procurar muito. E convenhamos que seus olhos eram ótimos atores. Eles precisavam farejar o cara da vez e ainda fingir que estavam desinteressados, só de passagem, e tudo isso com um leve toque de sensualidade que só Antônia tinha no olhar. Meio sexy sem ser vulgar, sabe? Seu olhar estava de parabéns. Nunca subestime um olhar. Eles dizem as melhores coisas nas mais simples e distintas maneiras. 
   "André. 32. Ainda mora com os pais. Namora uma menina tímida chamada Bianca. Em sua vida inteira beijou apenas duas moças e um rapaz. E uma das moças era a Bianca. É leonino, porém não faz muito sucesso com as pessoas apesar de querer ser o centro das atenções por onde passa. Será difícil decifrar esse ai", pensou. Pensou isso tudo enquanto andava da catraca até a segunda fileira de assentos que ficavam atrás da porta de saída, no meio do ônibus. Mas para pensar essa infinidade de coisas sobre um estranho ela não levava em consideração a aparência. Qualquer um que visse aquele garoto diria que seu nome é Bernardo e que ele tinha 19 anos. Ele tinha a maior cara de quem acabou de passar no vestibular e ainda estava experimentando a vida de universitário. Antônia não ligava para aparência para concluir sobre ninguém. Ela realmente tentava entender a pessoa por dentro. Para isso nem olhava o rosto, só olhos bastavam. Disse "oi" levantando o cenho, apoio a mão esquerda no suporte superior do ônibus e deslizou para sentar-se ao lado de André. "Dia quente hoje, não?", disse depois de alguns segundos em sua mente olhando para ele, aguardando tímida a resposta. Ao desviar os olhos dela pra janela, André deu um leve sorriso. Achava a situação inusitada de ter uma louca ao seu lado claramente dando em cima dele engaçada. "Realmente quente. Quer ir a minha casa hoje?", recebeu a resposta em choque, alguns minutos depois. "Não", respondeu. E finalmente os olhos dos dois não mais se cruzaram, pois Antônia já mantinha uma estranha feição séria e surpresa ao mesmo tempo. Já sabia tudo o que precisava, já entendera até de mais qual era a dele.
   Desceu seis pontos depois. "Apressado demais. Por isso só três pessoas. Talvez apenas seja muita carência. Coitado", pensou enquanto descia do ônibus. Dali até em casa ela tinha uns duzentos metros a serem percorridos a pé e mais alguns poucos minutos para não esquecer mais um estranho com uma história incrível a ser escrita. Pegou a chave no mesmo bolso pequeno da bolsa em que o dinheiro do ônibus estava. Abriu a porta delicadamente e caminhou nas pontas dos dedos, com cuidado para não escorregar por causa da meia que ainda estava lá em seus pés.  Sentou na cama e escreveu sobre mais um alguém que ela fez companhia em um ônibus. André não mais esteve sozinho em seu trajeto pra casa, teve alguém pra conversar e para o tirar da solidão dos fones de ouvido e das músicas altas. Antônia lembrou disso e se sentiu feliz de uma maneira tão simples enquanto escrevia sobre como o cabelo dele seria lindo se ele o jogasse para o lado ou talvez simplesmente cortasse. E quem nunca se sentiu um André ou uma Antônia na vida quando andou de ônibus uma vezinha sequer? Quem nunca nomeou um estranho ou tentou descobrir apenas olhando para ele seu estado civil? Ela podia acertar em cem porcento ou errar tudo o que imaginou sobre alguém. Mas uma coisa ela tinha: essa menina guardava o mundo inteiro e mais alguns em sua cabeça e, assim, ia colecionando amizades e criando sua interminável lista de contatos.